domingo, 14 de março de 2010

A Formação da Sociedade Nacional

A questão nacional se coloca desde o início da história, no primeiro momento, como dilema prático e teórico. As guerras e revoluções de independência sintetizam-se precisamente nesse dilema. O que há de épico nas lutas simbolizadas por Tausaint Louverture, Francisco de Miranda, Simón Bolívar, José Artigas, José Morelos, Miguel Hidalgo, Bartolomé Mitre, Bernardo O'Higgins, Antonio Sucre, José Bonifácio, Frei Caneca, Ramón Betances, José Martí e muitos outros, está enraizado na façanha destinada a emancipar a colônia, criar o Estado, organizar a Nação. Retirá-la do colonialismo, absolutismo, mercantilismo, acumulação originária, conferindo-lhe um nome. A criação do Estado, segundo os princípios adotados na constituição, em conformidade com as forças sociais, as peculiaridades da economia, as diversidades regionais, raciais e culturais, tudo isso representa o empenho de descobrir o perfil da Nação.
A sociedade nacional se forma aos poucos, de modo contraditório, em vais-e-vens, como se estivesse demoradamente saindo do limbo. Paulatinamente, nas terras americanas, os conquistadores vão se tornando nativos, colocam-se em divergência e oposição em face da metrópole, passam a lutar pela pátria. Surgem as inconfidências, insurreições, revoltas, revoluções, nas quais estão presentes nativos, crioulos, nacionais, mestiços, mulatos, índios, negros, espanhóis, portugueses, ingleses, franceses, holandeses e outros. Começam a delinear-se a sociedade, o Estado, a Nação, em torno de uma cidade, região, movimento, líder; ou cidades, regiões, movimentos, líderes. Nesse sentido é que "a nação é uma categoria histórica" (PÉREZ, 1981, p. 3). O território e o povo formam-se nessa história. "É um fenômeno geralmente aceito que, entre os séculos XVII e XVIII, o nativo deixou de sentir-se espanhol (poderíamos acrescentar também português) e passou a considerar-se americano" (CORREA, 1966, tomo VII, p. 373). Estava em curso a formação das nacionalidades latino-americanas.
Esse é um momento primordial da larga, difícil e contraditória metamorfose da raça em povo, ou da população de trabalhadores em povo de cidadãos. Mas estamos, ainda, no começo dessa história. "Os dirigentes decididos a conquistar o poder político, os intelectuais teóricos da liberdade, acorrem necessariamente, em um dado momento, ao descontentamento das massas, à revolução da miséria. Mas, aqui, as massas são - em diversas proporções e segundo os diferentes países - índios, mestiços, negros, livres ou escravos'' (VILAR, s/d, p. 50). Ainda não são um povo, em termos políticos. "Como convencê-los de que formavam parte, junto com a minoria nativa, da mesma 'nação', de uma mesma 'pátria'?" (VILAR, s/d, p. 50). Acontece que o Estado nacional que começava a formar-se emergia como um núcleo de interesses de setores dominantes, geralmente brancos. Apoiava-se na exploração do trabalho de escravos, ex-escravos, encomiendados, yanaconas, peões, agregados, colonos, mineiros, artesãos, camaradas, operários e outros, compreendendo índios, mestiços, negros, mulatos e brancos de origens nacionais diversas.


A gênese de cada sociedade nacional compreende tanto a luta contra a metrópole como as divergências internas, além dos conflitos com vizinhos. "Alguns dos novos estados - Uruguai e Bolívia - encontraram sua verdadeira identidade precisamente no conflito com seus vizinhos americanos." Mas cabe lembrar que, em diversos casos, "as massas tinham escassa devoção pelas nações em que viviam"; tanto assim que "os índios não se integraram nas novas nações'' (LYNCH, 1980, p. 373). Em outros termos, era o que acontecia com os negros. "O sistema político dos novos estados representava a determinação nativa de controlar índios e negros, a força rural de trabalho." Tratava-se de "conter as castas" inferiores (Idem, p. 379-80). Simultaneamente, desenvolvem-se as diversidades e desigualdades entre a cidade e o campo, as regiões. Desde o início, está em curso a luta pela terra e pela disciplina do trabalho.
Junto com as diversidades sociais, econômicas, culturais e raciais, formaram-se também as regionais. Logo se revelou um singular e fundamental desencontro entre as regiões, a cidade e o campo, a região e a Nação. As tropelias oligárquicas, os separatismos, o contraponto civilização e barbárie, ou centralismo e federalismo, nascem nesse contexto. O dilema estava no princípio da história; e entra pelo século XX, naturalmente, em outros termos. O desafio consiste em construir um sistema político unitário e federativo que "compreenda e concilie as liberdades de cada província e as prerrogativas de toda a Nação, solução inevitável e única que resulta da aplicação aos dois grandes termos do problema argentino - a Nação e a Província - da fórmula chamada hoje a presidir a política moderna, consistindo na combinação harmônica da individualidade com a generalidade, do localismo com a nação, ou seja da liberdade com a associação" (ALBERDI, 1981, p. 118-9).
O problema regional tem a maior importância, na maioria dos países latino-americanos. No Brasil, é básico, pelos problemas específicos de cada região e suas implicações nos arranjos do poder estatal. Ressurge em diferentes conjunturas. Ele é um dos segredos de Os Sertões, de Euclides da Cunha. Esta obra está inspirada no incidente de Canudos, ocorrido em fins do século XIX, em um lugarejo dos confins do estado da Bahia. Diante do que se dizia ser o fanatismo e monarquismo de um grupo de sitiantes pobres, o Estado brasileiro foi levado a mobilizar forças militares e policiais, bem como a imprensa e os meios políticos. A opinião pública foi induzida a tomar posição contra a remota comunidade liderada por Antônio Conselheiro. No início do conflito a grita geral era o pedido de extermínio, feito pelos estudantes, pelos deputados e senadores, pelos intelectuais, pelos jornalistas, pelos militares. Mas no momento em que o extermínio se efetiva, todo o mundo se escandaliza. Ao nível do discurso, os termos pejorativos dados aos canudenses são substituídos pelas palavras "brasileiros" e "irmãos". Mortos, tornam-se humanos e compatriotas. Muitos, que antes falavam em "horda de mentecaptos", "fanáticos", "galés", "jagunços", agora recusam-se "a participar das comemorações da vitória. A vergonha nacional é geral. O Exército é coberto de opróbrio. Passado o perigo, vem o remorso. Há um processo generalizado de mea culpa", que "explica em grande parte o imediato e extraordinário êxito de Os Sertões e a guindada de seu autor à celebridade. Como todo grande livro, este também organiza, estrutura e dá forma a tendências profundas do meio social, expressando-as de maneira simbólica. Tudo se passa como se o processo de expiação da culpa coletiva tivesse atingido seu ponto mais alto nesse livro" (GALVÃO, 1981, p. 79).
No singular e no geral, a questão nacional se coloca, reiteradamente, no curso da história. Mas cabe reconhecer que, em certas conjunturas, ela se torna mais aberta, cria desafios novos, reabre dilemas anteriores em outros termos "O século XIX caracterizou-se pelas tentativas de criar nações a partir das facções dispares e fragmentárias que constituíam a sociedade. Pela altura das décadas de 1880 e 1890, o prolongado esforço para restaurar a ordem e a unidade, em grande parte, obtivera êxito em praticamente todas as nações latino-americanas; o poder se consolidara nas mãos dos interesses oligárquicos, estreitamente associados aos elementos mercantis-empresariais, e de uma nova geração de caudilhos da 'ordem e progresso'. Seguiu-se um período de estabilidade, prosperidade e construção de infra-estruturas nacionais." (WIARDA, 1983, p. 27-8.)
O nacionalismo, portanto, não é um só; cria-se e recria-se, no âmbito das conjunturas históricas, segundo o jogo das forças sociais internas e externas. "As atitudes nacionalistas e ainda o sentimento de pertencimento a uma nação, começaram sendo características das classes alta e média (daí, entre outras coisas, suas vinculações tradicionais com as posições de direita); somente mais tarde os sentimentos nacionalistas se difundem nas classes populares." (GERMANI, 1960, p. 54.) Mas o nacionalismo das diversas categorias sociais não é o mesmo. Seria equívoco imaginar que o patriotismo do militar, o protecionismo do comerciante e industrial e o antiimperialismo de setores populares expressam o mesmo nacionalismo. São várias e diversas as Nações que estão em causa nas controvérsias nacionalistas.
No século XX, o dilema continua em aberto. Multiplicam-se os debates e estudos sobre a questão nacional, ou seus aspectos. As pesquisas sobre oligarquia, populismo, militarismo, liberalismo e democracia, ou economia primária exportadora, enclave, industrialização substitutiva de importações, dependência, bilateralismo, multilateralismo, imperialismo, dívida externa, muitas vezes, compreendem a problemática nacional. Surgem interpretações sobre a instabilidade política congênita, as dualidades básicas, o círculo vicioso da causação circular cumulativa, a marginalidade social, bem como classes, movimentos sociais, partidos políticos, lutas sociais, golpes de Estado, revoluções e contra-revoluções. Alguns propõem tipologias ou escalas, nas quais poderiam classificar-se as Nações mais ou menos formadas, no continente e nas ilhas.
Vejamos um exemplo, uma espécie de escala de nacionalidades, provavelmente inspirada na conjuntura crítica dos primeiros anos da década dos 60. Então, os governos dos Estados Unidos e dos países da América Latina estavam mobilizados contra a revolução socialista vitoriosa em Cuba desde 1959. Essa revolução reabria a problemática nacional e apontava outro modo de encaminhá-la, resolvê-la. A escala sugere o "grau em que diversos países latino-americanos tornam-se verdadeiras sociedades nacionais". Toma por base "critérios, tais como a integração étnica da população, a história política, no que se refere à coesão ou desorganização, à complexidade da cidade e ao âmbito ocupacional do sistema econômico, ao grau de autonomia ou dependência das zonas rurais e ao poder político do campesinato, no caso de que possua algum, fatores de mobilidade e assim por diante. São estes os países latino-americanos que mais próximos estão de constituir o estado-nação: Uruguai, Argentina, Cuba, Costa Rica e Chile, talvez em escala descendente". A categoria seguinte pode incluir "os países que avançam rapidamente no sentido do estado-nação, com sólido consenso social apoiando essa tendência. Em ordem descendente discutível, tais países são: México, Colômbia, Brasil, Venezuela e, recentemente, a República Dominicana. A terceira categoria inclui os países nos quais os grupos superiores se movem fortemente na direção de metas nacionalistas, enquanto que o corpo social responde com apatia. São eles: Peru, Bolívia, Guatemala, Equador, El Salvador e Panamá, sempre numa ordem discutível E, por fim, em Honduras, Paraguai, Nicarágua e Haiti há lentidão de movimentos, pois quase todos os setores sociais estão estacionários" (SILVERT, 1968, p.16)1.
Não é necessário dizer que essa escala de nacionalidades foi questionada pelos movimentos da história, no âmbito de cada um e todos os países, no continente e nas ilhas. Houve o Chile socialista de Allende e há o fascista de Pinochet; houve a experiência socialista em Granada, liderada por Maurice Bishop, e destruída pela invasão militar norte-americana; houve ditaduras militares, de cunho fascista, na Argentina, Brasil e Uruguai, destroçando experiências democráticas e conquistas culturais da maior importância; houve a vitória da Revolução Sandinista na Nicarágua; há uma revolução popular em marcha em El Salvador. "A guerra dura sete anos. O exército, com um efetivo de 60 mil homens bem armados pelos americanos, não consegue derrotar os seis mil guerrilheiros que combatem o governo, 38% dos quais sob mulheres." (COSTA, 1987, p.7.)


Muita coisa houve e há no curso dessa história. As desigualdades e contradições escondidas nas diversidades nacionais irrompem e revertem periodicamente a fisionomia da Nação.

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