domingo, 14 de março de 2010

Terra e Liberdade

A história da formação da sociedade nacional latino-americana é a história de uma longa luta pela terra. No primeiro dia, todos ouviram o grito: - Terra à vista! No depois, sempre, há a colonização, bandeirismo, pioneirismo, busca do ouro, coleta de especiarias, escambo com os nativos, donatárias, sesmarias, escravização do índio e do negro, economia primária exportadora, enclave, industrialização substitutiva de importações, associações de capitais, latifúndio, fazenda, plantação, engenho, estrada, rodovia, barragem, agroindústria, fábrica, cidade. Sempre se repete o grito: - Terra à vista! Desde o primeiro dia, está em andamento a luta pela terra. Desenvolve-se um longo processo de monopolização da propriedade e exploração da terra.
O problema agrário também está na base da questão nacional, como um dos seus aspectos mais importantes. Nos países da América Latina esse problema sempre envolve índios, mestiços, negros, mulatos e brancos nacionais e imigrantes; e não apenas camponeses, operários, grileiros, latifundiários, fazendeiros etc. Estão em causa diferentes formas de organização social e técnica do trabalho, produção e apropriação. A família, a comunidade, a cooperação, a divisão social do trabalho, o camponês e o operário mesclam-se todo o tempo na produção para o mercado e para o autoconsumo.
Durante a época colonial, compreendendo a escravatura e outras formas de trabalho compulsório, já se estabeleciam as linhas mestres de uma estrutura agrária problemática, polarizada na sesmaria, latifúndio, fazenda, plantação, engenho e outras formas de organização social e técnica da produção. É nessa época que se estabelecem algumas das marcas que delimitarão o território nacional.
Depois da independência, com o predomínio dos interesses oligárquicos associados à economia primária exportadora, ao enclave, realizaram-se vastas operações de deslinde e demarcação de terras devolutas, indígenas, comunais, ocupadas. Muitas comunidades indígenas, Nações inteiras, foram desalojadas de suas terras, ou mesmo liquidadas. No México, Nicarágua, Argentina, Brasil e outros países, estava em marcha a organização do Estado nacional, a formação do mercado de trabalho, a monopolização da propriedade da terra. Esse era um capítulo fundamental da revolução burguesa, no qual a criação do trabalhador livre acompanhava a transformação da terra em propriedade privada, mercadoria.
A revolução agrária, provocada pela acumulação originária em curso no século XIX e entrando pelo XX, desalojou, expulsou, proletarizou e lumpenizou muitos trabalhadores rurais. Indios e mestiços aqui, negros e mulatos acolá, além de brancos nacionais e imigrantes em vários lugares, muitos foram e continuam a ser alcançados pelas marchas e contramarchas da revolução agrária que acompanha os desenvolvimentos do capitalismo no campo. Simultaneamente, criam-se, desenvolvem-se ou agravam-se as desigualdades sociais, culturais, raciais, regionais (MOLINA ENRÍQUEZ, 1979/ROMÁN, 1979/LIMA, 1954).
Persiste, no entanto, a luta pela terra. Trabalhadores rurais das mais diversas categorias lutavam, e continuam a lutar, pela posse e uso da terra; pela conservação, conquista ou reconquista da terra. Na maioria dos países, o problema agrário está na base de alguns dilemas tais como: as articulações das regiões com a Nação; as desigualdades sociais, culturais e outras; a metamorfose da população em povo.
Naturalmente, cabe lembrar que a reforma agrária realizou-se em alguns países, e em outros continua a realizar-se. No México, Bolívia, Chile e Peru, entre os países capitalistas, houve distribuição de terras a trabalhadores. No México chegou-se à proposta de ejido coletivo, como uma forma de resgatar as bases econômicas, sociais e culturais da comunidade indígena. Não há dúvida de que houve realizações notáveis em alguns países. Mas também houve e há decepções, recuos. As famílias e núcleos camponeses criados com a reforma agrária acabam subordinados aos mecanismos de mercado, são obrigados a abrir mão de uma parcela crescente do produto de seu trabalho, ou transformam-se em operários disfarçados. Há casos em que as terras distribuídas são as piores, menos férteis, distantes dos meios de comunicação e mercados, ou mesmo impróprias para cultivo e criação. Isto é, o problema agrário passa a colocar-se em outros termos, mas ainda adverso aos trabalhadores rurais.
Acontece que a reforma agrária tem sido uma operação principalmente econômica, a despeito de apresentar-se, à primeira vista, como social, política. Nem sempre é acompanhada de medidas políticas que favoreçam o engajamento do trabalhador rural no sistema nacional de poder, salvo como subalterno, administrado, regulado. Implica na cidadania tutelada, por meio do sindicalismo governamental, a assistência técnica e o crédito manipulados por agências do poder público etc. Ou seja, não se traduz em conquistas políticas democráticas. Tudo se subordina aos mecanismos do mercado, às exigências da produção, produtividade, lucro.
Não há dúvidas de que no México realizou-se uma reforma agrária de amplas proporções. Os governos dizem que "já não há mais terras para entregar aos camponeses". De fato, a reforma agrária modificou drasticamente as estruturas fundiárias do país, destruindo "formas de dominação e exploração" seculares Mas os camponeses passaram a defrontar-se com novas modalidades de subordinação. Estão sujeitos a "uma exploração mais eficaz". Há um "neolatifundismo", resultante da forma pela qual a sociedade camponesa passou a ser submetida ao industrialismo. Os mecanismos de mercado, os processos de financiamento, as exigências da maquinização e quimificação criaram novos e poderosos vínculos dos capitais industrial, bancário e comercial com a produção camponesa. O neolatifundismo opera com base nos "critérios de maximização dos rendimentos econômicos", estabelecidos conforme os movimentos dos mercados nacional e internacional. "Surgiram novas e talvez mais refinadas formas de opressão, que mantêm o campesinato em posição subordinada, dependente, e sujeito a uma exploração mais eficaz." (WARMAN, 1980, p. 27-8.)


A reforma agrária realizada no Peru, a partir da década dos 60, não produziu a emancipação do camponês, índio, mestiço ou branco. As exigências da indústria, comércio e banco logo se tornaram imperativas. O governo e os grupos dominantes, nacionais e estrangeiros, empenham-se em redefinir as relações do campesinato beneficiado pela reforma com as exigências da economia nacional, isto é, do grande capital. Trata-se de abrir possibilidades de operação de empreendimentos agroindustriais, o que envolve a redefinição dos limites da propriedade agrária; criar "dispositivos adequados para capitalizar na agricultura ". Para isso, "o governo do Peru introduzirá mudanças na reforma agrária de 1969- 76, a fim de possibilitar o investimento agropecuário privado, que atualmente é proibido" (TRIVERI, 1987, p, 17).
Nesse sentido é que o problema agrário continua a ser um aspecto importante da questão nacional, Expressa desigualdades e antagonismos sociais que dizem respeito a famílias, grupos sociais e setores de classes, compreendendo remanescentes de Nações indígenas deslocados, expropriados, desenraizados de suas condições de vida, trabalho e cultura.
A terra não se reduz à natureza, ao território; ela é social, histórica; ganha as formas que lhe dá o trabalho. "Às vezes o camponês fala da terra como de algo sagrado." (LACAYO, 1982, p. 224.)
Os sentidos físicos e espirituais dele estão particularmente desenvolvidos no que se refere às suas formas. Para ele, ela pode ser virgem, mata, campo, serrado, pampa, montanha, vale, desmatada, queimada, seca, úmida, fofa, fértil, gorda, semeada, cultivada, descansada, pronta. Sem terra, o camponês sente-se morrer, errante. "É como um zumbi" (LACAYO, 1982, p. 225), arrancado do seu elemento, desenraizado. É da terra que se arrancam as raízes de muita gente, muito povo.
A revolução burguesa não tem sido capaz de resolver o problema agrário, no que se refere aos interesses de amplos setores da sociedade nacional. Pode-se imaginar que as desigualdades originárias desse problema alimentam contradições que podem ser decisivas na emergência de movimentos sociais, protestos, revoltas. Toda revolução popular na América Latina conta com segmentos camponeses, quando não arranca do mundo camponês. A história de Tupac Amaru, Wilka, Antônio Conselheiro, Zapata, Villa, Sandino e muitos outros, desde os tempos coloniais até o século XX, passa pelo mesmo grito: - Terra e liberdade! A revolução socialista em curso no continente e nas ilhas tem raízes distantes, longas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário