sábado, 22 de agosto de 2009

A retórica do Brasil

Brasil: um país de discriminação racial.

Há todo um discurso que tenta sustentar a imagem de que o Brasil, por sua formação social híbrida, misto de várias raças, seria um local onde um racismo não teria encontrado espaço. Não é bem assim. De fato, ao contrário de países como os Estados Unidos e a África do Sul, a violência racial a a dificuldade de afirmação social do negro não foi tão problemática. Mas há um racismo velado que se mostra cada dia mais evidente.
Um abismo de 55 países separa o Brasil negro do branco: no ranking de qualidade de vida medido pelo IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), o negro brasileiro fica em 101º lugar, e o branco, em 46º lugar. Com isso os negros têm qualidade de vida comparável à de países pobres como Vietnã (101º lugar no ranking da ONU) e Argélia (100º lugar), onde o desenvolvimento humano é considerado de médio para baixo. Já os brancos têm qualidade de vida similar à de países como a Croácia (46º lugar) e os Emirados Árabes (45º lugar), de alto desenvolvimento.
Esse é o resultado de uma pesquisa feita pelo economista Marcelo Paixão, professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Com a mesma metodologia usada pelo Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) para elaborar o IDH - que considera indicadores de educação, expectativa de vida e rendimento per capita -, ele calculou os índices para as populações de negros e brancos no Brasil, referentes ao ano de 1999.
Em vez de negros, porém, o pesquisador usa a terminologia afro-descendentes, somando aqueles que o IBGE classifica como pretos e pardos. Segundo o instituto, em 1999 a população brasileira era formada por 54% de brancos, 5,4% de pretos e 39,9% de pardos.
Em 1999, 91,7% dos brancos com mais de 15 anos eram alfabetizados, enquanto, entre negros, essa taxa era de 80,2%. Na análise dos indicadores salariais, a pesquisa mostra que a renda média familiar per capita dos brancos (2,99 salários mínimos) é mais do que o dobro da dos negros (1,28 salário). Na expectativa de vida, o negro também perde: vive, em média, 65,12 anos, enquanto o branco vive 71,23 anos.
A sociedade brasileira só agora está discutindo mecanismos para combater este problema. O fato é que, se há consequências, há causas e, com certeza, muitas delas estão ainda ligadas à questão do preconceito. É necessário repensar nossos parâmetros de igualdade racial.

O Brasil e a criminalidade.

Não é à toa que a criminalidade vem se configurando como um dos principais problemas brasileiros. Um estudo recente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), concluído no fim da década de 90, apontou a criminalidade como o principal obstáculo ao crescimento dos países latino-americanos. Estima-se que a violência represente gastos anuais equivalentes a 10% do PIB brasileiro (nos Estados Unidos, um país que não pode ser considerado exatamente pacífico, o custo direto anual da violência representa cerca de 4% do PIB).
Em média, um preso do sistema carcerário brasileiro consome uma verba mensal de cerca de 750 reais. Uma criança da rede pública de ensino, hoje, não custa para o contribuinte mais de 70 reais ao mês. Segundo dados do Ministério da Saúde, na década de 90 os homicídios tornaram-se a principal causa de morte entre adolescentes e adultos jovens. As conseqüências para o setor de turismo são funestas. O Brasil deixa de receber, a cada ano, cerca de 8 milhões de turistas estrangeiros. Com isso, o país perderia algo como 10 bilhões de dólares anuais em divisas. O lamentável episódio ocorrido no Ceará com os seis portugueses é exemplo mais evidente desta catástrofe.
Enquanto isso, alguns ganham com a violência. As companhias especializadas em segurança e vigilância crescem a um ritmo invejável - de 4% a 5% ao ano -, ocupando um espaço deixado pela inoperância da segurança pública. Estima-se que, juntas, elas faturem 8 bilhões de reais ao ano. A Justiça e um sistema penitenciário cheio de brechas também funcionam como um estimulante ao banditismo. Só 1% dos condenados cumprem pena até o final (nos Estados Unidos, esse índice chega a 15%). O restante consegue benefícios legais ou foge. No Brasil, segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional, há cerca de 234 mil presos espalhados por 895 presídios.
Uma pesquisa feita pelo Datafolha em fevereiro revela que, na esteira da banalização dos crimes, o medo de assaltos e sequestros chegou com força às camadas de menor poder aquisitivo. Dos 1.080 entrevistados pelo instituto na cidade de São Paulo, 53% afirmaram considerar grande a chance de serem sequestrados - as outras opções eram classificar o risco como médio, pequeno ou nenhum. Entre as classes D e E, o índice chegou a 57%, superando os 50% dos entrevistados das classes A e B que se consideram potenciais alvos de quadrilhas de sequestradores.
Isso mata o mito de que só os ricos é que devem se preocupar. Pelo contrário, a inoperância da nossa Justiça e do sistema de segurança pública nos colocam numa situação próxima à da mais completa barbárie.

Brasil é um dos 5 países mais desiguais do planeta.

A Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), do IBGE, mostra que o perfil de distribuição de renda mudou pouco desde o início do governo FHC. O Plano Real trouxe ganhos aos trabalhadores de menores salários, que não tinham acesso aos instrumentos financeiros que permitiam que os mais ricos se defendessem dos efeitos da inflação. Assim, em 1993, os 10% dos ocupados que estavam no topo da pirâmide de salários ficavam com 49% do total de rendimentos. Naquele ano, os 50% mais pobres embolsaram apenas 12,9%.
O quadro melhorou em 1995, com a parcela dos 10% mais ricos caindo para 47,1% e a dos 50% mais pobres subindo para 13,4%. A partir de 1996, as melhoras continuaram, mas em magnitudes menores. A última Pnad, feita em 1999, mostrava que os 10% mais ricos ficaram com 45,7% da renda, enquanto os 50% mais pobres embolsaram 14,5% do total. O quadro é ainda menos animador para o caso da parcela mais pobre da população ocupada. Os 10% mais pobres ficavam, em 1993, com 0,7% do total dos rendimentos. Em 1995, um ano após o Plano Real, a participação dos 10% mais pobres subiu, e eles passaram a receber 1% do total.
Desde 1995, no entanto, não houve nenhuma alteração e, em 1999, esta parcela da população ocupada continuava recebendo o mesmo 1% que recebia em 1995. O indicador mais utilizado para medir concentração de renda, o índice de Gini, também não mudou muito no período. O índice de Gini varia de 0 a 1. Quanto mais próximo de 1 fica o número apurado, maior a concentração de renda de um país. Um ano antes do Plano Real, em 1993, o Brasil tinha um índice de Gini de 0,603. O indicador caiu, ainda que pouco, em todos os anos desde então, e ficou em 0,576 no ano de 1999.
Mesmo esta modesta melhora, no entanto, não tira o Brasil do clube dos cinco países com o maior concentração de renda do mundo. É uma vergonha que persiste e que precisa acabar.

Origens e causas do crime organizado no Brasil.

A imprensa traz diariamente notícias sobre crimes ocorridos país afora. Em 2006, a cidade de São Paulo se viu diante de uma situação inusitada por cerca de três dias: uma facção criminosa autodenomidada Primeiro Comando da Capital (PCC) conseguiu fazer a cidade parar, com uma série de atentados a policiais, a ônibus e a instituições bancárias, que geraram pânico na população e mudaram a rotina da metrópole. Episódios semelhantes ocorrem em alguns bairros do Rio de Janeiro. No Ceará igualmente aumentam os casos de violência.Antes de analisar os fatos em si, é mais interessante procurar o fenômeno histórico e sociológico que está por trás dele: o surgimento do crime organizado no Brasil. Isso ocorreu ao longo da década de 1970 e vários fatores concorreram para que as quadrilhas se transformassem em verdadeiras corporações empresariais.Na década de 60, começou a acentuar-se significativamente a urbanização do país, devido ao êxodo rural. No ano de 1970, 56% da população brasileira vivia em cidades. Dez anos depois, já eram 68%. Atualmente, passam dos 80%. A população do campo migrou para as grandes cidades - Rio e São Paulo num primeiro momento-, em busca de melhores condições de vida.Tratava-se de gente pobre, com pouco estudo e sem especialização profissional. Parte desse imenso contingente humano, ao longo dos anos 70, conseguiu seu lugar ao sol. A crise do petróleo no final da década e a estagnação econômica dos anos 1980 impediram que outra parte também se desse bem na vida, excluindo-os dos pequenos e flutuantes avanços da economia brasileira desde então.Resultado: com a continuidade do êxodo rural somado à diminuição da renda, ao desemprego e às poucas oportunidades de trabalho, favelas e as regiões periféricas não só cresceram, como também se tornaram um território propício ao desenvolvimento do crime.Por que propício? Porque se trata de um território menosprezado pelos governantes e onde o Estado não se fazia presente, prestando os serviços que prestar, como a segurança, para dar o exemplo mais óbvio.Na verdade, durante os 21 anos do regime militar (1964-1985) e os 21 subseqüentes de democracia, inexistiram políticas públicas sistemáticas voltadas para o setor de segurança. Os militares voltaram o aparato policial para os opositores do regime. Estes, por sua vez, ao chegarem ao poder, simplesmente ignoraram a questão.Durante os governos militares, criminosos comuns entraram em contato com membros das organizações guerrilheiras de esquerda que combatiam a ditadura. No convívio comum, os criminosos comuns absorveram as táticas e estruturas organizacionais das esquerdas. Não por acaso, a prmeira facção criminosa do Rio de Janeiro se autodenominou "Comando Vermelho", numa alusão à cor das bandeiras das organizações e partidos de esquerda.Obivamente que isso não explica o fenômeno como um todo. Não basta ter aprendido os rudimentos de organização na cadeia. A organização, aliás, não parte necessariamente do contato com esquerdistas.Muitos presos se organizaram a partir da explosão populacional nas cadeias e das condições de vida precária que nelas vigorava. Organizar-se era uma forma de se proteger, evitando assassinatos e estupros por outros presos. Era também uma maneira de tentar dialogar com as autoridades e reivindicar melhores condições de vida na prisão.Mas o elemento que parece ter sido decisivo para a organização do crime no Brasil foi o tipo de negócio com que ele se envolveu, um tipo de negócio altamente lucrativo: o tráfico de drogas. Maconha e cocaína alavancaram o crime organizado por aqui, assim como ocorreu com o álcool clandestino em Chicago, durante a lei seca (1920).Lucrativo devido à expansão do consumo (sobretudo entre as classes médias e mesmo elites), o tráfico de drogas exige uma estrutura complexa para ser levado a bom termo. Ele implica o plantio e a colheita da maconha e da coca, inclui o tratamento das plantas em estado bruto (no caso da cocaína, o refino é feito a partir de outras substâncias químicas), abrange a estocagem, o transporte e a distribuição - no atacado e no varejo.Como o negócio não é regulamentado por leis, muito pelo contrário, a garantia de segurança para todas as etapas do processo são as armas. Assim, a violência se torna parte integrante do negócio.Dessa forma, o tráfico de armas passou a se desenvolver paralelamente ao de drogas, num círculo vicioso em que uma forma de tráfico alimenta a outra e a violência se multiplica e potencializa. Além disso, gera ainda a necessidade de as atividades criminais se diversificarem, entrando pelo campo do roubo de veículos e de cargas, por exemplo. Sem falar que os chefões dos negócios se vêem forçados a lavar o dinheiro que ganham, isto é, dar um jeito para justificar legalmente a sua origem.Some-se a isso o aumento da população pobre e da exclusão social como causas da criminalidade. A possibilidade de melhorar de vida rapidamente e de escapar da exploração do mundo do trabalho pelo patronato levam muita gente a adentrar na vida criminosa. Obviamente que a questão social, por si apenas, não explica tudo. Talvez se possa falar de vários outros fatores, mas dois são certamente unânimes entre os estudiosos da questão. Em primeiro lugar, vem a certeza da impunidade. Os grandes criminosos, em sua maioria, sabem que podem dispor de recursos para contratar advogados que, por sua vez, encontrarão as mais diversas brechas numa legislação muito longe de ser a ideal para lidar com o crime organizado. Pior, o crime organizado atualmente começa a corromper o próprio judiciário, como demonstra o envolvimento recente de vários juizes em ações delituosas. Em segundo lugar, está a degradação dos valores morais, da expansão do individualismo neoliberal, em que a idéia de vencer na vida a qualquer preço tornou-se uma espécie de missão única da cada pessoa. Tem-se um vale-tudo social, onde as práticas mais absurdas são toleradas em nome da ascensão e do ter.

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